Neste domingo (27), o Brasil se despede de uma de suas figuras mais emblemáticas da justiça: Maria Nice Leite de Miranda, a primeira mulher a ocupar o cargo de defensora pública no país. Aos 95 anos, Maria Nice faleceu no Rio de Janeiro, deixando um legado de pioneirismo, coragem e compromisso inabalável com os princípios da cidadania e da justiça social.
Mesmo após a aposentadoria, Maria Nice permaneceu ativa no ambiente jurídico, sendo referência para inúmeras gerações de profissionais, especialmente mulheres, que encontraram em sua trajetória um exemplo de determinação e inovação. Este artigo revisita sua vida, suas contribuições e o impacto duradouro que ela deixou no sistema judiciário brasileiro.
Quem foi Maria Nice Leite de Miranda?
Maria Nice Leite de Miranda nasceu em uma época em que a participação feminina nas esferas públicas ainda era extremamente limitada. A década de 1950, no Brasil, era marcada por profundas desigualdades de gênero, e o universo jurídico era quase que exclusivamente masculino.
Formada em Direito, Maria Nice conquistou em 1958 um feito histórico: tornou-se a primeira defensora pública do Brasil. Sua entrada no serviço público representou uma quebra de paradigmas e abriu portas para a presença feminina em posições de destaque na justiça.
Com postura firme e sensibilidade aguçada para os temas sociais, Maria Nice rapidamente se destacou por sua atuação comprometida com a promoção dos direitos humanos e com o acesso à justiça para os mais vulneráveis.
A trajetória na Defensoria Pública
A carreira de Maria Nice foi marcada por importantes marcos institucionais. Em 16 de maio de 1974, ela foi nomeada corregedora da Assistência Judiciária do antigo Estado do Rio de Janeiro — cargo equivalente ao que hoje seria considerado de extrema relevância dentro da estrutura da Defensoria Pública.
Seu trabalho como corregedora foi interrompido menos de um ano depois, em março de 1975, em decorrência da fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, que deu origem ao modelo atual do Estado do Rio de Janeiro. Mesmo assim, sua contribuição nesse período foi fundamental para a organização e a profissionalização dos serviços de assistência jurídica gratuita.
Maria Nice sempre defendeu a importância da Defensoria como "Casa da Cidadania", uma expressão que ainda hoje é utilizada para descrever a missão de garantir direitos a quem mais precisa.
O contexto histórico de sua atuação
Para compreender plenamente a dimensão do legado de Maria Nice, é necessário considerar o contexto histórico em que ela atuou. A década de 1950 no Brasil era marcada por uma sociedade conservadora, onde o espaço da mulher era geralmente limitado ao ambiente doméstico.
O ingresso de uma mulher em um cargo de tamanha responsabilidade no sistema de justiça representava, portanto, uma verdadeira revolução silenciosa. A presença de Maria Nice no serviço público não apenas desafiava normas sociais rígidas, mas também plantava sementes de mudança para gerações futuras.
Sua trajetória antecedeu importantes avanços legais no Brasil, como a Emenda Constitucional de 1965 que consolidou a Defensoria Pública como função essencial à justiça e, mais tarde, a Constituição Federal de 1988, que elevou a Defensoria Pública a condição de instituição permanente e autônoma.
O legado de inspiração para mulheres no Direito
A história de Maria Nice transcende sua atuação como defensora pública. Ela tornou-se um símbolo para todas as mulheres que sonham em ocupar espaços historicamente negados a elas.
Ao longo das últimas décadas, o número de mulheres atuando no campo jurídico cresceu exponencialmente. Hoje, é comum ver mulheres como promotoras, juízas, advogadas e defensoras públicas. Essa realidade, no entanto, foi possível graças ao trabalho pioneiro de mulheres como Maria Nice.
Em nota de pesar, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro reconheceu essa dimensão histórica de sua atuação:
“Em 1958, ela abriu caminhos e se tornou símbolo de coragem, inspiração e pioneirismo para tantas outras mulheres. Descanse em paz, Maria Nice. Sua luta está gravada na trajetória da Casa da Cidadania.”
O papel da Defensoria Pública e sua evolução
A Defensoria Pública é uma instituição fundamental para garantir o acesso à justiça. Seu principal objetivo é assegurar que todos, independentemente de condições financeiras, possam ter representação jurídica adequada.
Desde a época de Maria Nice, a Defensoria passou por diversas transformações:
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Ampliação de serviços: Hoje, as defensorias oferecem suporte em áreas que vão de direitos civis e penais até direitos da infância, da mulher e da população LGBTQIAPN+.
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Autonomia institucional: A Constituição de 1988 garantiu autonomia administrativa e financeira às defensorias, permitindo maior independência em sua atuação.
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Interiorização: Houve uma expansão significativa dos serviços para municípios menores, promovendo maior acesso à justiça em regiões antes desassistidas.
Todo esse progresso deve muito ao pioneirismo de profissionais como Maria Nice, que acreditaram na importância da assistência jurídica gratuita e justa desde os primórdios.
Homenagens e reconhecimento
A trajetória de Maria Nice foi reconhecida em diversas ocasiões ao longo de sua vida. Ela recebeu homenagens de associações de defensores públicos, instituições de ensino jurídico e órgãos de classe.
Muitos a consideram um verdadeiro patrimônio histórico da justiça brasileira, uma referência ética e moral para as novas gerações de operadores do Direito.
Além das homenagens formais, sua história é constantemente relembrada em eventos, seminários e publicações que tratam do papel das mulheres no fortalecimento da cidadania no Brasil.
A importância de preservar sua memória
Preservar a memória de Maria Nice Leite de Miranda é fundamental para compreender a luta por direitos no Brasil. Sua trajetória nos ensina que a transformação social é construída passo a passo, muitas vezes contra as marés da resistência cultural e institucional.
Valorizar figuras históricas como ela também é essencial para inspirar futuras lideranças femininas em diversas áreas, especialmente naquelas onde a representatividade ainda é pequena.
As novas gerações precisam conhecer histórias como a de Maria Nice para entender que o caminho da igualdade é longo, mas que cada conquista pavimenta a estrada para o futuro.
Lições deixadas por Maria Nice
Entre as muitas lições que sua vida nos ensina, algumas se destacam:
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Coragem para romper barreiras: Enfrentar um sistema conservador exige determinação e fé na mudança.
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Compromisso com a cidadania: O trabalho de defender os mais vulneráveis é essencial para a construção de uma sociedade justa.
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Importância do pioneirismo: Ser o primeiro é difícil, mas é também abrir portas para que muitos outros possam passar.
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Resiliência diante das adversidades: Mesmo em tempos de incerteza política e social, sua dedicação ao serviço público nunca vacilou.
Maria Nice Leite de Miranda foi muito mais do que a primeira defensora pública do Brasil: ela foi uma pioneira que mudou, com seu exemplo e sua atuação, os rumos da justiça brasileira. Sua história é uma celebração do espírito público, da coragem e do compromisso com os ideais mais nobres da cidadania.
Seu falecimento aos 95 anos marca o fim de uma era, mas também a perpetuação de um legado que continuará inspirando gerações. Maria Nice nos deixa a mensagem clara de que mudar o mundo começa com a coragem de ser a primeira a tentar.
Em tempos de tantos desafios sociais, políticos e jurídicos, sua trajetória nos lembra da importância de nunca desistir da luta por uma sociedade mais justa, mais inclusiva e mais humana.
Que a memória de Maria Nice Leite de Miranda continue viva em cada defensor e defensora que luta diariamente para garantir o direito de todos à justiça.
Créditos (Imagem de capa): Maria Nice Leite de Miranda foi a primeira defensora pública do Brasil. Divulgação/Adperj
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