Um importante esforço de preservação histórica e busca por justiça foi lançado no Brasil: o Acervo da Pandemia, uma plataforma digital que reúne documentos, vídeos, áudios e reportagens sobre a gestão da crise sanitária da covid-19. Organizado pelo Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pela Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico), o acervo apresenta evidências que podem embasar futuras ações judiciais de reparação.
Com cerca de 150 registros catalogados — e mais 100 em análise — o projeto denuncia práticas que teriam exposto a população brasileira a riscos evitáveis e busca garantir que a memória das vítimas e dos erros cometidos durante a pandemia não seja esquecida.
Acervo da Pandemia: um instrumento para a justiça
O Acervo da Pandemia foi lançado oficialmente em março de 2025 com o objetivo de fornecer material confiável e acessível para vítimas, familiares, pesquisadores, jornalistas e autoridades públicas. Para os organizadores, ele é mais do que um repositório: é um "testemunho histórico" da forma como a pandemia foi enfrentada no país.
Segundo Rosângela Oliveira Silva, presidente da Avico, o acervo oferece "um arcabouço de fatos" que demonstra a responsabilidade do Estado Brasileiro na má gestão da crise sanitária.
"A um operador do Direito, por exemplo, que queira entrar com uma ação na Justiça, o acervo dá a possibilidade de recorrer aos fatos de forma séria, com dados fidedignos, bem catalogados, de fácil acessibilidade", afirmou Rosângela.
Essa documentação pode embasar não apenas processos individuais de reparação, mas também a criação de políticas públicas de assistência e prevenção de futuras tragédias.
O conceito de “necrossistema da pandemia”
Os pesquisadores do projeto definem o cenário que emergiu durante a pandemia como um "necrossistema", termo que descreve a atuação coordenada de instituições e agentes que, de maneira consciente, manipulavam informações e expunham a população ao risco de morte.
De acordo com o acervo:
"Estudos mostram que havia um sistema coordenado e articulado, que atuou para desinformar, manipular e expor desnecessariamente as pessoas ao vírus e ao risco de morte, buscando aproveitar a crise para impor narrativas e condutas negacionistas."
Essas práticas, segundo a equipe do Sou Ciência, envolveram a promoção de tratamentos sem eficácia comprovada, sabotagem de campanhas de vacinação, resistência a medidas sanitárias recomendadas internacionalmente e omissões estratégicas de autoridades.
Organização dos documentos e eixos temáticos
Para facilitar a consulta e tornar o acervo uma ferramenta prática para o embasamento de ações, os registros foram divididos em 17 eixos temáticos, entre eles:
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Omissões e conivências
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Ética e autonomia médica
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Ciência e evidência
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Tratamento precoce
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Vacina
Cada tema reúne documentos e registros audiovisuais que ilustram condutas específicas durante a pandemia e ajudam a construir uma linha cronológica de eventos e decisões.
O material foi produzido por uma equipe multidisciplinar, que seguiu critérios científicos rigorosos para assegurar a fidedignidade dos registros.
Possibilidade de reparação e desafios no Brasil
Apesar da riqueza do acervo e das provas nele contidas, o caminho para a reparação ainda é incerto no Brasil. Segundo Rosângela Oliveira Silva, o país ainda não apresentou respostas institucionais efetivas para as vítimas da covid-19.
"O Brasil ainda não deu resposta do ponto de vista da reparação. Mas o Acervo colabora no sentido de permitir que a população não fique no esquecimento", declarou.
A expectativa é que o material seja utilizado não apenas em processos individuais, mas também inspire a criação de comissões de verdade, iniciativas legislativas, programas de reparação e memória e, principalmente, mudanças estruturais nas políticas públicas de saúde e assistência.
A importância da memória e da responsabilidade
Soraya Smaili, coordenadora do SoU Ciência e professora titular da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, destaca que o Acervo da Pandemia é crucial para impedir que os erros cometidos sejam varridos para debaixo do tapete da história.
"O Acervo da Pandemia não é apenas um repositório de documentos. Ele é um testemunho do que ocorreu no Brasil durante um dos períodos mais críticos da nossa história."
Preservar essa memória é fundamental não apenas para honrar as vítimas, mas para garantir que futuras gerações possam aprender com os erros cometidos e evitar a repetição de tragédias.
Pandemia e política: uma crise ampliada pela desinformação
Diversos estudos acadêmicos e relatórios apontam que a gestão da pandemia no Brasil foi marcada por:
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Incentivo a medicamentos ineficazes, como a cloroquina.
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Ataques a medidas de isolamento social e uso de máscaras.
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Minimização da gravidade do vírus e sabotagem de campanhas de vacinação.
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Produção e disseminação de fake news em plataformas digitais.
Essas ações não apenas ampliaram a gravidade da crise sanitária, mas também geraram profundas divisões sociais e políticas, cuja repercussão ainda é sentida na sociedade brasileira.
Iniciativas similares pelo mundo
O projeto do Acervo da Pandemia se inspira em movimentos internacionais que buscaram preservar a memória de crises sanitárias e violações de direitos humanos.
Exemplos incluem:
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Os memoriais e museus do Holocausto.
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As comissões da verdade pós-ditadura na América Latina.
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Iniciativas de documentação de tragédias sanitárias, como o surto de HIV/AIDS.
Esses projetos mostram como a preservação da memória é essencial para a reconstrução social e para a promoção da justiça e da verdade.
O Acervo da Pandemia surge como uma ferramenta vital para que o Brasil enfrente seu passado recente com responsabilidade e transparência. Mais do que reunir documentos, ele mantém viva a memória de mais de 700 mil brasileiros que perderam suas vidas e denuncia as práticas que agravaram essa tragédia.
A luta por reparação e justiça é longa, mas, graças a iniciativas como essa, existe agora uma base sólida para que familiares de vítimas, operadores do Direito e formuladores de políticas públicas possam agir de forma embasada e ética.
Preservar a história não é apenas um ato de memória: é um compromisso com o futuro.
Créditos (Imagem de capa): Acervo denuncia política de morte na pandemia e pode embasar reparação Altemar Alcantara/Semcom/Prefeitura de Manaus

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